Sr. Xico da Alorna
A vindima de 2004 marcou-me de muitas formas diferentes. Penso que nunca conseguirei nomeá-las todas mas, seguramente, o facto de ter trabalhado numa adega sem responsabilidades de maior aliando a possibilidade de poder aprender sem ónus foi, seguramente uma das mais importantes.
Fruto disso, conheci pessoas que me marcaram para a vida.
Formas de estar que me proporcionaram verdadeiras viagens no tempo. Gente que
me ajudou a encontrar uma alma. A minha alma.
Conheci o "Sr. Xico" logo no primeiro dia de Quinta da Alorna. A Martta (então enóloga júnior) levou-me à vinha para me explicar como se recolhiam os bagos
para o controlo de maturação (baptizei o processo por Bagonage). Apresentou-me
então o capataz do campo, conhecedor de todas as castas do encepamento. Bons momento
passei com ele a aprender sobre a viticultura dos homens do campo. Aquela que se constrói com retalhos de coisa técnica misturada com muitas horas de sol, apimentada
aqui e ali por uma enxada ou uma cura sem máquinas.
Lembro-me de ficar pasmado quando me disse: "Ali
no meio do Arinto 2, na terceira carreira, mais ou menos a meio, encontras umas
uvas um pouco mais rosadas e de sabor mais aguado. Não é Arinto, é Tália. Uns pés
que ficaram das cepas que estavam antes."
Não vos parecerá extraordinário que um homem que anda diariamente no campo conheça estes pormenores, mas garanto-vos que, numa
propriedade onde a vinha é apenas uma das culturas e onde sozinha tem mais de 200 ha (na altura), saber pormenores destes é obra. Digo eu!
Certo dia, já não sei muito bem com quem, perguntei-lhe
porque razão no meio da trincadeira das pratas (casta branca) havia uma grande
mancha com uvas tintas. Aquilo não fazia sentido nenhum, mas numa casa como
aquela teria de haver algum motivo concreto e coerente. Lembro-me que
alguns de nós (éramos uns 7 estagiários) avançavam com a célebre justificação: "Ah, é para os vindimadores comerem e
não usarem as uvas do talhão".
O Sr. Xico, sorriu e
disse-nos: "Essa mancha é Trincadeira preta. O enxertador, no dia em que fez o trabalho, embebedou-se ao almoço e trocou as varas. De tarde, enxertou
tudo com as varas da preta". Delicioso!
Chamava-me “O Homem do Ribatejo”, nome que me enchia de um
misto de orgulho e responsabilidade. Afinal, aparecia ali gente vinda de todo o
lado. Representar a região era uma honra. No seu traje, o chapéu à
marzentino e bota de pele com salto de "prateleira" era uma constante.
Nas minhas visitas posteriores, sempre que podia, procurava-o.
Trocava dois dedos de prosa e um abraço. Aquele senhor, não sei porquê, fazia-me
lembrar o meu avô ribatejano, o avô Zé que nunca cheguei a conhecer, mas que me descreviam como sendo a pessoa mais afável do mundo, amigo, conversador e amante de qualquer vinho.
Nisso não preciso preocupar-me em tentar perceber se saí à
parte Ribatejana ou Alentejana da família. Se os Ribatejanos diziam mata, os Alentejanos diziam
beba-se!
O Sr. Xico acabou por ser traído pelo coração e não chegou a
fazer todas as vindimas que lhe eram devidas. A lotaria da vida roubou-lhe a possibilidade de uma velhice jubilada.
No meu imaginário, será, contudo, imortal.
Sr. Xico,onde quer que esteja, receba um abraço meu!
Sr. Xico,onde quer que esteja, receba um abraço meu!
O rancho, no intervalo para almoço, durante a vindima. |
Comentários