Foderam a comédia dos enganos… e agora?
Caso 1
Não consigo precisar quanto tempo passou desde que a questão dos “descontos no supermercado” levantou uma onda de protestos junto da comunidade enófila digna de uma novela mexicana. Foi inclusivamente motivo de várias crónicas jornalísticas, nenhuma delas elogiosa, nas quais se criticava e se explicava de que forma se perpetra o suposto “logro”.
Basicamente, ao que tudo indica, um vinho de um valor baixo é colocado inicialmente à venda por um preço muito superior ao real. Pouco tempo depois este vinho entra numa promoção demolidora (50, 60, 70... 80%) que trará o preço para valores próximos do valor real. O consumidor acaba por comprar o vinho ao valor justo, mas convencido de que fez um grande negócio.
Imaginem um vinho que valha 5€ e é posto à venda a 15€ durante umas semanas (não sei ao certo quanto tempo se costuma dar), findo esse tempo o vinho aparece com um desconto de 67% e custa... 5€.
Para que a coisa seja perfeita, são criadas marcas especificamente para este efeito. Marcas sem histórico e logo, sem possibilidade dos preços serem comparados.
Os enófilos acharam, e bem, que isto é uma estratégia indigna e imoral, que explora sobretudo os instintos mais básicos da forma como o consumidor faz as suas escolhas. São os porcos dos grandes poderes do sistema a manipularem, mais uma vez, a pobre mente dos inocentes consumidores.
Alguma coisa neste processo me parece imoral? Sim.
É legal? Totalmente.
Caso 2
Há dias a net quase veio abaixo com a genial ideia que um suposto artista teve de ir comprar umas garrafas de um vinho a uma adega, vinho esse que os responsáveis da adega não se coíbem de afirmar que têm no mercado, 3€ julgo eu, meteu-lhe um rótulo mal enjorcado, impossível de ser legal e fazendo uso das velhinhas piadas de xixi e coco. Com isto, o vinho passou a valer 15€.
A comunidade enófila foi ao rubro com a ideia. Senti no ar o cheiro dos múltiplos orgasmos e rizadas de aprovação à "genialidade" e ousadia da ação... "Que se foda 2020"?... foda-se... demais... que génio do caralho... mesmo.
Que quantidade extra de neurónios é necessária para tamanho rasgo criativo? Não faço ideia... os meus não chegam sequer para o compreender como tal!
Os jornalistas e jornaleiros foram atrás, escreveram-se artigos em todo o lado a laurear a ideia e a ousadia de explorar os instintos mais básicos da forma como o consumidor faz as suas escolhas. Nem sequer se deram ao trabalho de perguntar se seria legal, contentaram-se com o mais pobre, em brasileiro "é legal...".
Alguma coisa neste processo me parece imoral? Sim.
É legal? Não tem como!
Embora pareçam diferentes, estes casos tocam-se, sobretudo no facto de ambos exploram os instintos mais básicos da forma como o consumidor faz as suas escolhas. Quem opta pelo segundo acaba ainda por beber um vinho pior do que pagou, algo que costuma ser caro aos enófilos... quase sempre.
O caso de estudo de que tantos falam, a existir, está precisamente aqui. No caso 1, esse é o argumento condenável. No caso 2 é precisamente o argumento louvável.
Diria até que os enófilos se mostram mais sensíveis a quem (exploram os instintos mais básicos da forma como o consumidor faz as suas escolhas) do que ao quê.
Acresce ainda o facto de, se nada for feito, se ter aberto um precedente gravíssimo no que toca à rotulagem de vinhos para comercialização. Se passa a valer tudo... é a anarquia. Perdemos todos, acho eu!
Lendo um dos artigos que esta palermice mereceu, salta-me a declaração de um dos responsáveis da adega que vendeu o vinho:
“Esta irreverência pode ser algo muito positivo para a região de Lisboa, que precisa muito de ser catapultada”.
Não pá! Isto não tem nada de irreverente, isto quanto muito seria subversivo, mas a um nível que está, a meu ver, muito longe da arte, logo... nulo de valor. Irreverência é outra coisa bem distinta. Já na capacidade de catapultar a região... bem... não vejo o "como", mas sobretudo temo o "para onde".
Comentários
Embora com algum atraso, assino por baixo a sua oportuna crónica sobre o oportunismo e a boçalidade dos fazedores e seguidores do "Que se f... 2020".
Um abraço,
Francisco Cunha
enófilo militante
Confesso que foi a comunicação social quem me deixou mais perplexo.
Forte abraço
Hugo