Uma dama chamada Vital
Um dos aspetos que me continua a apaixonar no mundo do vinho é esta capacidade que as uvas, mostos e vinhos têm de nos surpreender. Comportamento que, para os românticos metafóricos imita o humano.
Se há coisa que a casta vital me ensinou, logo na primeira colheita, 2018, foi que reduz "que é um disparate" nos finais de fermentação e mesmo durante os primeiros meses de estágio dos vinhos. Em 2018 assustou-me, em 2019 menos, mas ainda assim lá estavam as couves cozidas no virar da fermentação. Em 2020, ano que escolhi para apanhar as uvas em dois momentos de maturação, algo que aprendi em Bucelas. Quando se quer muita riqueza e complexidade num vinho de apenas uma casta, nada como ter diferentes níveis de maturação (nem todos os grandes vinhos se fazem só de vinha como está na moda afirmar-se por ai).
Como eu dizia, em 2020 subi a fasquia, comprei mais uva, de facto fiquei com toda a uva que o talhão deu, para garantir que eram possíveis estes dois níveis de maturação. A primeira parte, com parâmetros de base espumante entrou muito bem e tem estado muito bem também. Reduziu um pouco no final da fermentação, tal como a de 2019 e passou-lhe passado pouco tempo. Nada estranho. Agora a segunda parte, que entrou mais madura, com 11,5% álcool e uns agradáveis 7g de acidez, mais perto do meu limite para esta casta (12,5% pois entendo que maturações para cima levam a um envelhecimento precoce dos vinhos que não aprecio).
Para isso, faço bastante oxidação dos mostos, sobretudo nestas castas que têm uma tendências para os aromas florais e bocas mais doces. É por isso também que começo a evitar as madeiras nestes vinhos, prefiro contactos mais prolongados com borras que lhe dão a cremosidade sem lhe darem doce.
Agora imaginem qual não foi o meu espanto quando esta ultima maturação, fez uma fermentação perfeita e limpa mas no final, começou a dar redução a níveis que nunca senti. Acreditei mesmo que o vinho estaria perdido. Passámo-lo a limpo para lhe retirar a borra mais grosseira e arejar um pouco. Mesmo assim os aromas permaneceram, com uma intensidade que me fizeram acreditar que estavam "agarrados" ao vinho. Sem salvação, portanto! Fechei a cuba e deixei-a ficar. Honestamente, se a sempre cheia calha a ser necessária, teria desistido dele e mandado para um lote de venda a granel. Felizmente não foi e com isso pude aprender mais esta lição.
Com esta coisa do COVID, estive impedido durante um mês de ir à adega e provar os vinhos. Felizmente a malta da Santos & Seixo (para quem não sabe, são os donos da adega onde está o vinho) foi-me vigiando os vinhos, analisando e dando ar às tampas das "sempre cheias". Parece um detalhe... como tudo o que é fundamental na criação de um grande vinho. Devo-lhes muito.
Quando voltei na semana passada, levava na mente a necessidade de decidir sobre que vinhos a engarrafar e o que fazer a este vital.
Quando levei o copo ao nariz... espanto... estava limpo! Fechado como são os meus vital nesta fase, mas sem rasto daquela redução absurda que senti. Trouxe para casa amostras para provar e ensaiar um possível lote... a chama da esperança vinha bem acesa.
Todas as provas que fiz entretanto confirmaram a clareza e limpidez aromática do vinho. Agitei, deixei a garrafa em vazio e aberta por dois dias... obriguei-o a fazer o pino. Nada, nadinha de nada de aromas desviantes. Incrível... maravilha.
O lote acabou por ser decidido à mesa com a família. Nascerão dois vinhos a partir das duas maturações. Um Vital tranquilo que resulta de uma mistura 60:40 entre estas duas maturações (base espumante em menor quantidade) que em prova, apresenta a austeridade e o vegetal do 2018 com uma estrutura mais próxima da do 2019. Terá uma acidez de 6g para um álcool de 11,3% aproximadamente. Irá para a garrafa em breve mas fará um sono de beleza em garrafa que não sei ainda quanto tempo durará. Irá ser ele a mandar.
Isto tudo também me ajudou a perceber a razão pela qual era uma casta com pouca utilização a solo e menor interesse para os enólogos. É idiossincrática, temperamental e impertinente. Difícil na vinha, com uma tendência louca para a podridão. Chegada à adega, empina o seu lindo nariz e grita: "Não me trata como se eu fosse uma Sauvignon ou uma Chardonnay qualquer, ouviu?".
Difícil não se apaixonar por ela, certo?
P.S.: Qual é o segundo vinho? Não descobriram já? Será um espumante, claro... mas isso é assunto para outro dia. ;)
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